Um motorista parado no sinal se descobre subitamente cego. É o primeiro caso de uma "treva branca" que logo se espalha incontrolavelmente. Resguardados em quarentena, os cegos se perceberão reduzidos à essência humana, numa verdadeira viagem às trevas.
O Ensaio sobre a cegueira é a fantasia de um autor que nos faz lembrar "a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam". José Saramago nos dá, aqui, uma imagem aterradora e comovente de tempos sombrios, à beira de um novo milênio, impondo-se à companhia dos maiores visionários modernos, como Franz Kafka e Elias Canetti.Cada leitor viverá uma experiência imaginativa única. Num ponto onde se cruzam literatura e sabedoria, José Saramago nos obriga a parar, fechar os olhos e ver. Recuperar a lucidez, resgatar o afeto: essas são as tarefas do escritor e de cada leitor, diante da pressão dos tempos e do que se perdeu: "uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos". Sobre o autor: José Saramago nasceu em 1922 na próvincia do Ribatejo, Portugal. Filho de agricultores, foi serralheiro, desenhista, funcionário público, tradutor, e jornalista. Romancista, poeta e teatrólogo, em 1998 ganhou o prêmio Nobel de Literatura.
No romance Ensaio sobre a cegueira (1995), de José Saramago, a cegueira descrita é representada através de inúmeras metáforas. Já no início da narrativa as personagens são acometidas pelo chamado "mal branco", impossível de ser diagnosticado como um dos tipos já conhecidos de cegueira. Considerando a cegueira como metáfora, ao longo deste romance Saramago tenta explicar como as pessoas vão se tornando cegas no mundo contemporâneo, como inexplicavelmente ocorreu com o primeiro cego, primeira personagem apresentada na narrativa, que cegou quando conduzia o seu automóvel: de repente a realidade tornou-se indiferenciada à sua volta.
Quando o "primeiro cego" chegou ao consultório do oftalmologista para tentar descobrir uma solução para o seu problema de visão, o médico considerou o caso urgente e passou-o à frente dos demais pacientes que aguardavam pela consulta. Porém, a mãe de um menino que aguardava sua vez não se sensibilizou diante da urgência do paciente inesperado e "...protestou que o direito é o direito, e que ela estava em primeiro lugar, e à espera a mais de uma hora. Os outros doentes apoiaram-na em voz baixa, mas nenhum deles, nem ela própria, acharam prudente insistir na reclamação, não fosse o médico ficar ressentido e depois pagar-se da impertinência fazendo-os esperar ainda mais" (EC: 22).
A pressa e insensibilidade desses pacientes diante de um indivíduo com um problema considerado mais urgente pelo médico talvez seja um primeiro indício apresentado pelo narrador de que a cegueira pode ser provocada pelo distanciamento existente entre os indivíduos nas sociedades modernas. Um distanciamento que leva cada um a observar apenas os seus próprios interesses, interesses tais que só serão limitados pelo cálculo da conveniência: "...na verdade, sentencia o narrador deste romance, ainda está por nascer o primeiro ser humano desprovido daquela segunda pele a que chamamos egoísmo, bem mais dura que a outra, que por qualquer coisa sangra" (EC: 169).
O egoísmo como cegueira é novamente mencionado quando o transeunte que ajuda o primeiro cego a voltar para casa aproveita-se da ocasião para roubar-lhe o automóvel. Mas o narrador não realiza um julgamento apressado da atitude do ladrão, e considera-o um "...simples ladrãozeco de automóveis sem esperança de avanço na carreira, explorado pelos verdadeiros donos do negócio, que esses é que se vão aproveitando das necessidades de quem é pobre" (EC: 25). Pelo visto, o narrador relativiza a importância do crime do roubo para colocar em evidência o seu julgamento sobre os motivos que levam os indivíduos a buscarem os seus interesses por meios escusos: "...No fim das contas, estas ou outras, não é assim tão grande a diferença entre ajudar um cego para depois o roubar e cuidar de uma velhice caduca e tatibitate com o olho posto na herança" (EC: 25).
Diante das necessidades animais os humanos deixam em segundo plano os seus vínculos afetivos e princípios morais, como o faz o rapazito estrábico que diante da fome deixa de chorar a ausência da mãe, e como fazem os cegos que preferem seguir as "razões do estômago" a se preocuparem com o destino dos colegas de infortúnio que são mortos quando tentavam alcançar as caixas de alimentos deixadas pelos soldados no pátio do manicômio, e "...ninguém parecia interessado em saber quem tinha morrido" (EC: 92).
A personagem "rapariga dos óculos escuros" também será apresentada na narrativa com a mesma generosidade com que, a princípio, o narrador tentou relativizar a atitude do "ladrão de automóvel". Considerada prostituta, a moça é defendida dos julgamentos preconceituosos, peremptórios e definitivos: "Ela tem, como a gente normal, uma profissão, e também como a gente normal, aproveita as horas que lhe ficam para dar algumas alegrias ao corpo e suficientes satisfações às necessidades, as particulares e as gerais. Se não se pretender reduzi-la a uma definição primária, o que finalmente se deverá dizer dela, em lato sentido, é que vive como lhe apetece e ainda por cima tira daí o prazer que pode." (EC: 31)
A simpatia do narrador para com a personagem "rapariga dos óculos escuros" provoca uma nova absolvição da moça, desta vez no episódio em que ela reage ao assédio sexual do "ladrão de automóveis", causando-lhe um ferimento na perna, mesmo se depois tal ferimento levará o ladrão a procurar a ajuda de um soldado, recebendo por isso uma inesperada rajada de tiros. Numa digressão, o narrador menciona, então, um tipo de cegueira impossível de ser superada pelos humanos, que é a cegueira provocada pela impossibilidade de previsão de todas as consequências, desejadas ou não, do seus atos:
"... se antes de cada acto nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar. Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala"
Autor: José Saramago.
Editora: Companhia Das Letras.
Gênero: Romance.
Págnas: 310. Ano: 2008.
Por desejo do Autor, foi mantida a ortografia vigente em Portugal.
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