"Quem não interpreta o que lê, além de fazer alarde daquilo que julga ter assimilado, não entende o que diz."

Contos gauchescos e outras lendas

A obra Contos Gauchescos, editada pela primeira vez em 1912, é uma coleção de 19 contos que tem como ambientação no pampa gaúcho. Contadas pelo envelhecido vaqueano Blau Nunes, as histórias narram aventuras de peões e soldados. As narrativas são sempre sobre o gaúcho, guerreiro, trabalhador, rústico. Nelas a linguagem é sempre um dialeto característico do interior do Rio Grande do Sul e existe um enorme respeito pelos elementos deste estilo de vida: os animais, os instrumentos, a paisagem. Existe também uma grande exaltação do espírito guerreiro do gaúcho, especialmente nas narrativas de guerra, ambientadas na maioria das vezes na Revolução Farroupilha.
Ao fazer de Blau Nunes o narrador de Contos Gauchescos, Simões Lopes Neto enfrentou um problema que nenhum outro escritor brasileiro até então solucionara: que linguagem utilizar? A norma culta soaria falsa e artificial. O linguajar do peão romperia a convenção literária e se isolaria na forma de expressão de um grupo. Simões Lopes Neto solucionou esse problema da seguinte forma: fez largo uso do léxico e eventualmente da sintaxe próprios da linguagem da campanha, mas submetendo-os a morfologia da norma culta. Assim, ele manteve a “cor local”, própria do regionalismo, sem romper com a tradição literária, fazendo universal também a sua linguagem.
A linguagem utilizada no conto "Trezentas Onças" demonstra bem essa universalidade.
Através de Blau é que percebemos o presente e o passado, estruturados na narrativa. Há o Blau moço, militar e o Blau velho, "genuíno tipo – crioulo – rio-grandense". Os demais que protagonizam os contos narrados por Blau são, quase sempre, iguais a ele.

Isso pode ser identificado no primeiro conto da obra de Lopes Neto, "Trezentas Onças". Blau Nunes, que além de narrador (em 1ª pessoa) também é personagem do conto, é um vaqueano igual, tanto nas condições sociais como na honestidade, aos tropeiros que acharam e devolveram a sua guaiaca com as trezentas onças.
Repare na apresentação que o escritor faz deste narrador:
(...) E, por circunstâncias de caráter pessoal, decorrentes da amizade e da confiança, sucedeu que foi meu constante guia e segundo o benquisto tapejara Balu Nunes, desempenado arcabouço de oitenta e oito anos, todos os dentes, vista aguda e ouvido fino. (...)
Genuíno tipo – crioulo - rio-grandense (hoje tão modificado), era Blau o guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável; e dotado de uma memória de rara nitidez brilhando através de imaginosas e encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco.
E do trotar sobre tantíssimos rumos: das pousadas pelas estâncias; dos fogões a que se aqueceu; dos ranchos em que cantou, dos povoados que atravessou; das coisas que ele compreendia e das que eram-lhe vedadas; (...) das erosões da morte e das eclosões da vida entre o Blau – moço militar – e o Blau – velho paisano ficou estendida uma longa estrada semeada de recordações – casos, dizia – que de vez em quando o vaqueano recontava, como quem estendesse ao sol, para arejat, roupas guardadas ao fundo de uma arca. (...)
Há em sua obra o cuidado de reconstruir o timbre familiar das vozes. E isso forneceria a mesma um efeito surpreendente de oralidade, encanto e frescor.

Simões Lopes Neto controla magistralmente os pontos de tensão de cada relato, açulando e, ao mesmo tempo, postergando a expectativa do leitor. A busca do dramático, em certos momentos, é tão intensa que os textos parecem ameaçados pelo excesso, isto é, pelo melodrama barato. No entanto, a intuição do artista mantém os contos nos limites verossímeis daquilo que é autêntica tragédia humana.
Em "Contrabandista", por exemplo, um pai atravessa a fronteira para buscar um vestido de noiva para a filha, mas no dia do casamento, enquanto o noivo, o padre e dezenas de convidados vão chegando, o pai não retorna com o presente. A espera, em plena festa matrimonial, pelo velho contrabandista e seus asseclas é uma das cenas mais exasperantes da ficção brasileira. Também o mísero destino de um animal, cruelmente morto por ricos fazendeiros a quem sempre servira com abnegação, em "O boi velho", é narrado de forma tão meticulosa por Blau Nunes que não há como fugir da comoção que o conto desperta:
O peão puxou da faca e dum golpe enterrou-a até o cabo, no sangradouro do boi manso; quando retirou a mão, já veio nela a golfada espumenta do sangue do coração...
Houve um silenciozito em toda aquela gente.
O boi velho sentindo-se ferido, doendo o talho, quem sabe se entendeu que aquilo seria um castigo, algum pregaço de picana, mal dado por não estar ainda arrumado... – pois vancê creia! – soprando o sangue em borbotões, já meio roncando na respiração, meio cambaleando, o boi velho deu uns passos mais, encostou o corpo ao comprido no cabeçalho do carretão, e meteu a cabeça, certinha, no lugar da canga... e ficou arrumado, esperando... (...)
E ajoelhou... e caiu... e morreu...

Autor: Simões Lopes Neto.
Gênero: Contos.
Editora: L&PM.
Ano:1998. 
Págnas: 222.

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