"Quem não interpreta o que lê, além de fazer alarde daquilo que julga ter assimilado, não entende o que diz."

Time dos sonhos. Paixão, Poesia e Futebol.

Só o futebol permite que você sinta aos 60 anos exatamente o que sentia aos 6. Todas as outras paixões infantis ou ficam sérias ou desaparecem, mas não há uma maneira adulta de ser apaixonado por futebol. Adulto seria largar a paixão e deixar para trás essas criancices: a devoção a um clube e às suas cores como se fosse a nossa outra nação, o desconsolo ou a fúria assassina quando o time perde, a exultação guerreira com a vitória. Você pode racionalizar a paixão, e fazer teses sobre a massa ou poesia sobre o passe, mas é sempre fingimento. É só camuflagem. Dentro do mais teórico e distante analista e do mais engravatado cartola aproveitador existe um guri pulando na arquibancada.

Se houvesse uma seleção brasileira de literatura, Luis Fernando Veríssimo certamente faria parte dela. Neste livro, ele coloca mais uma vez a inteligência para tabelar com o humor. Outro golaço de um dos maiores cronistas da atualidade.

           

                                                             DEPOIS DO BANHO.

Nosso time de futebol de calçada e terreno baldio se chamava Racing. Ou frequentemente se chamava Racing, pois assim como não tinha uma formação exata- o número de jogadores em ação podia oscilar entre três e treze, ou mais- o nome também variava. Mas eu gostava de Racing. Não "reicim", Racing, com a pronuncia francesa ou argentina. Cheguei a desenhar um escudo para o time, com as letras RFC, que nunca foi bordado nas nossas camisetas por uma única razão: não tínhamos camisetas. Jogávamos com nossa roupa normal, e as chuteiras, naquele tempo pré-tênis, eram os sapatos de todo dia, para desespero das mães. Sim, sou do tempo em que só se usava tênis para jogar tênis, e quem jogava tênis? Terminávamos os jogos suados, imundos, com roupas rasgadas e os sapatos mais arranhados do que as canelas desprotegidas. Os jogos terminavam ao anoitecer, mas alguns jogadores saíam antes do tempo, pois precisavam "entrar", chamados para fazer a lição de casa, tomar banho-enfim, aquelas coisas que atrapalham a vida de qualquer atleta. E era comum um dos que saíam voltar , de banho tomado e roupa mudada, enquanto o jogo estava em andamento.
  Lembra daquela sensação? Você voltava ao local onde antes trocava pontapés com outros selvagens ou rolava pelo chão sem se preocupar em poupar calça, camisa ou joelho, mas você era outro. Era você  depois do banho, com ordens expressas para não se sujar de novo.
 Ao mesmo tempo um ser superior que olhava os outros com divertida condescendência- "Ah, sim também fui criança como vocês..."-e uma espécie de pária, segregado dos outros pelo seu novo status
 de limpo, penteado e pronto para jantar.
 Lembrei disto pensando no P.T no poder. A sensação deve ser parecida. A de ter sido chamado a "entrar", deixando para trás o jogo da calçada ou do campinho com sua alegre irresponsabilidade, e voltar depois do banho, cheio de recomendações para se comportar, não se misturar mais com sua turma de peladeiros e, acima de tudo, não chutar nada com o sapato bom.

Autor: Luis Fernando Veríssimo.
Editora; Objetiva.
Gênero: Futebol, Crônicas.
Ano; 2010.
Paginas: 138.

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