"Quem não interpreta o que lê, além de fazer alarde daquilo que julga ter assimilado, não entende o que diz."

Frei Betto. Batismo de Sangue.

O duro preço da coerência...
Lendo este livo dramático e pungente, em que a grandeza e a miséria da condição humana se alternam em doloroso contra-ponto, temos frequentemente a impressão de que o conteúdo de suas páginas não passa de angustiante pesadelo, bastando-nos acordar e esfregar os olhos para que desapareçam todos os horrores e vilanias que elas tão vivamente relatam, dando lugar à alegria de viver, à democracia, à fraternidade e à justiça.
Com grande esforço, muitos conseguiram afastar da memória a vergonha e o nojo de saber que essa degradação ocorreu de fato. Mas a verdade é que convivemos com ela e, mesmo quando não nos atingiu de forma direta, ainda assim nos conspurcou. Relembrá-la, descreve-la nos seus detalhes é contribuir para que ela não se repita.
Alegando agir em defesa de princípios "ocidentais, cristãos  democráticos", as forças da repressão politico-militar-policial a que o Golpe de 1964 deu carta-branca outra coisa não fizeram do que cobrir de indignidade o nome do Brasil. A institucionalização da tortura, a transformação do sadismo em virtude profissional, o abastardamento da justiça e o primado da força bruta na luta contra o "comunismo" internacional, atrasaram de muito o pouco que vínhamos apresentando em termos de progresso social ao longo dos últimos quatro séculos de nossa história.
Frei Betto e alguns de seus irmãos dominicanos estão entre os brasileiros que mais duramente sofreram os efeitos desses anos de escuridão e decadência. Animados do desejo de passar da palavra ao gesto, de praticar os ensinamentos de Cristo acima de receios ou conveniências pessoais, eles se dedicaram com grande sinceridade e vigor à causa da emancipação democrática de nosso povo. Por isso e para isso, sem filiação ou dependência partidária, mantiveram amplos entendimentos com vários líderes políticos.
Como entre esses líderes se encontrava Carlos Marighella, um dos homens mais interessantes procurados pelas forças de repressão, o risco de tragédia iminente aumentava a cada instante. E ela, efetivamente envolveria os dominicanos de forma terrível e cruel.
Vários deles seriam detidos e torturados da maneira mais abominável ; Carlos Marighella seria assassinado, e sua morte- narrada pelos órgãos policiais como decorrente de resistência aramada à voz de prisão - lhes seria infamemente atribuída, em torpe mentira, como resultado de traição ou de covardia.
 Batismo de Sangue, com o subtítulo Os Dominicanos e a Morte de Carlos Marighella, realiza em plenitude a frase de Jorge Amado que adota como epígrafe- "Retiro da maldição e do silêncio e aqui inscrevo seu nome de baiano: Carlos Marighella." Ao fazê-lo, dando pela primeira vez o relato completo e fidedigno do assassinato desse líder revolucionário.
Frei Betto revive para todos nós os tristes dias da mais violenta ditadura que este país já conheceu, oferece-nos ao mesmo tempo o retrato nítido de dois homens tão distintos um do outro como Frei Betto e Sérgio Paranhos Fleury que , numa simplificação admissível se quisermos buscar o simbólico, bem poderão figurar como limites máximos da grandeza e miséria da condição humana a que nos referimos no início deste texto.
A pureza quase angelical do primeiro se contrapunha à cega e sanguinária dedicação do segundo ao seu métier, pois não se continha diante de coisa alguma para arrancar de suas vítimas a verdade, ou o que lhe parecia que ela devesse ser. Os dossiês Frei Tito / assassinato de Carlos Marighella dão a este livro seus pontos de sustentação e nos revelam pormenores surpreendentes sobre a forma pela qual se entrelaçaram.
Obra literária de rara e dolorosa beleza, documento humano candente, Batismo de Sangue é - e será para todo o sempre - um livro de cuja leitura e posse não devemos prescindir, pois se nos revela a baixeza infamante do homem, quando ele é o lobo do homem, nos dá, por igual, a transcendência de que revestem seus atos quando ele realmente se dispõem a dar de si.
Ênio Silveira.
     
                                                                Trechos:
Denunciado incontáveis vezes nos tribunais militares brasileiros, o crime de tortura jamais foi apurado ou punido. À luz da justiça sobrepõe-se, no juiz, a força do interesse. Sua estabilidade depende da confiança dos militares; qualquer suspeita significa o fim de sua carreira. Por isso, ao espanto inicial provocado pelos relatos de atrocidades, prevalece no magistrado a adequação de sua sensibilidade e consciência à tortura como método de interrogatório, ao assassinato como recurso de profilaxia política, à crueldade do poder como exigência de segurança e firmeza de autoridade. Para os torturadores , porém, o juiz não passa de um pobre coitado obrigado a dar cobertura legal aos crimes cometidos pelo Estado.

Os primeiros cristãos subverteram o Império Romano. Com sua mania de igualdade, arruinaram as bases jurídicas da natural diferença entre as pessoas e as classes, assentadas pelo Direito Romano. então começou a Democracia, e a matança de quem lutava por ela, e clamava por justiça.

É através das dissidências que a história acerta os seus passos. Há um momento em que as possibilidades de uma proposta - religiosa ou politica - parecem esgotar-se sob o peso dos anos, da rigidez de seus princípios, da inflexibilidade de sua disciplina, da intransigência de seus dogmas, da prepotência de seus líderes.

Autor: Frei Betto.
Editora: Bertrand Brasil.
Gênero: Repressão militar, torturas e mortes.
Ano: 1987. Paginas: 283.



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