"Quem não interpreta o que lê, além de fazer alarde daquilo que julga ter assimilado, não entende o que diz."

Ensaio Sobre a Lucidez



Em uma eleição regional, surpreendentemente, e sem qualquer sinal prévio de que tal fenômeno pudesse acontecer, a esmagadora maioria da população vota em branco. Ainda não refeitos de tal acontecimento, o poder político convoca novas eleições e o fenômeno repete-se. É o sistema político que está em causa, dizem uns, é a própria democracia que está em causa, dizem outros. É preciso encontrar uma explicação para este fato, é preciso prevenir que tal fenômeno não volte a acontecer; sim, principalmente e antes que tudo, é preciso que tal fenômeno não volte a acontecer. O governo, democraticamente eleito, resolve, tal como se fosse um governo ditatorial, aplicar medidas excepcionais, que encheriam de orgulho qualquer ditador. À lucidez da população, que exerceu um voto de protesto sobre o sistema político de partidos no qual não se revia, responde energicamente o poder político que, desbaratando a porventura pouca lucidez de que ainda dispunha, com um ataque de cegueira que o leva a colocar toda uma cidade em estado de sitio, sem qualquer tipo de proteção policial, com o objetivo de que os cidadãos, com o passar do tempo, se arrependam amargamente da ação que tiveram e que tudo volte rapidamente à normalidade.
Com muitas disputas políticas pelo meio, dentro do poder político, gera-se um impasse que é quebrado pela chegada de uma carta, de um cidadão que denuncia a possível causa de todo aquele estranho fenômeno que foi o voto em branco. Aqui, dá-se a ligação com os personagens do Ensaio sobre a Cegueira, e o romance muda completamente de rumo dando-se o agonizar da cegueira do poder político, que, à vista de um bode expiatório, envida todos os esforços por forma a seguir uma pista que leve aos culpados de toda esta situação, mesmo que estes não existam; mas forçosamente estes terão que existir (nem que sejam inventados), terá que ser responsabilizados e assim o poder político, tal e qual uma vulgar ditadura, para que possa distrair toda uma população do seu suposto inconsciente ato de voto em branco, quer levá-los a crer que foram vítimas de uma cegueira, neste caso uma brancura, da qual, segundo esse mesmo poder, se vão encontrar os culpados e tudo voltará depois à normalidade. Evidentemente, tal como tem sucedido em todas as histórias das ditaduras e dos poderes cegos, o poder é impotente face à marcha inexorável da verdade, ainda que, mesmo em face dos fatos, o poder mantenha, cega e implacavelmente, todos os seus planos de fria execução até ao fim.
O romance tem claramente duas partes: uma de pendor mais global, em que se satiriza toda uma situação de votação anormal, e as suas conseqüências quer em termos sociais quer em termos políticos; e uma segunda, onde o plano de ação passa para uma investigação policial a cargo de três homens, que vai incidir sobre um grupo particular de pessoas, e as suas interações com essas mesmas pessoas, que vai levar a que um dos polícias sofra o mais carismático ataque de lucidez de todos os personagens deste romance, através do qual Saramago vai provar que à conta da lucidez de um só indivíduo se pode alterar completamente o rumo e destinos de toda uma sociedade. Segundo as próprias palavras desse personagem, após o seu ataque de lucidez.

Autor: José Saramago.
Gênero: Romance.
Editora: Companhia das Letras.
Págnas: 325.   Ano: 2004.

Por desejo do Autor, foi mantida a ortografia vigente em Portugal.

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