Uma das lições importantes que os brasileiros estão aprendendo, desde o fim do regime militar em 1985, é que não basta instaurar os princípios gerais da liberdade e dos direitos civis para que a ordem democrática se estabeleça de forma plena. Os sistemas políticos democráticos supõem formatos institucionais e mecanismos de participação que não são triviais, e nem nascem de forma espontânea. A experiência de orçamento participativo, realizada pela Prefeitura de Porto Alegre e relatada em profundidade neste livro, deve ser vista neste sentido, como um esforço genuíno e importante de construir instituições políticas apropriadas para os novos tempos.
O que acontece na esfera política não depende só das formas institucionais de participação, mas da força e do peso relativo dos diversos atores e setores presentes nos processos políticos e administrativos, estruturas mais profundas relacionadas com a organização da sociedade para a articulação de seus interesses. O contraste que eu procurei estabelecer, escrevendo nos anos 70, entre "cooptação" e representação política correspondia, para mim, não somente a duas formas de organização do sistema político, mas a um problema mais profundo de força e peso relativo entre :"Estado" e "Sociedade" que condicionava a maneira pela qual o jogo político transcorria.. Se este peso relativo não se alterasse, pensava eu, então as instituições democráticas, mesmo se muito bem desenhadas, continuariam se corrompendo, e voltando a formas disfarçadas de dominação autoritária. Em outras palavras, o nível formal, institucional, não seria o decisivo.
Isto foi escrito nos anos de governo militar, e desde então estamos vivendo uma experiência de política democrática, não só porque temos instituições democráticas funcionando, mas por que o peso relativo da "Sociedade" brasileira em relação ao "Estado" se alterou. Agora, no sistema democrático, a questão das formas institucionais adquire nova relevância. Por que, se por um lado não seria possível alterar uma relação de força através de meros arranjos institucionais ou legais, o formato institucional que adotamos para colocar em prática os princípios e mecanismos de uma ordem democrática não são indiferentes. As discussões sobre as vantagens e desvantagens do regime parlamentarista, do voto distrital, da fidelidade partidária, a maneira pelas quais estas questões são ou não encaminhadas afetam, de maneira profunda, dois aspectos fundamentais de qualquer regime democrático, a sua legitimidade (ou seja, em que medida em que os governantes expressam efetivamente as aspirações e o mandato da população) e sua eficácia (ou seja, a capacidade que têm os governos de usarem de maneira efetiva e competente os recursos que recebem).
Em última análise, o que este livro discute é se as formas clássicas de organização da representação da sociedade em um regime democrático são adequadas, ou estão ultrapassadas, e precisariam ser substituídas por outros sistemas mais diretos de participação e representação. Existem dois problemas com as formas tradicionais de representação democrática, no nosso caso. Um é sua corrupção, na forma de regressão a modalidades personalistas ou patrimonialistas de poder; outro é o das dificuldades inerentes ao próprio modelo político de representação democrática. No primeiro caso, se trataria de uma democracia pouco consolidada. No segundo, estamos diante das limitações do próprio sistema democrático (ou, como querem alguns, da democracia "burguesa"), dentre as quais se ressaltam duas: a tendência à oligarquização dos regimes políticos burocratizados, e os problemas de racionalidade substantiva, próprios do welfare state, que requerem, presumivelmente, formas de relacionamento mais direto entre governo e cidadania, ao lado ou em acréscimo aos sistemas representativos tradicionais.
É nesse quadro que eu entenderia a discussão sobre orçamento participativo: em que medida ele seria um mecanismo de organização política de tipo pós-democrático, ou seja, que permitisse superar as limitações inerentes aos formatos democráticos usuais (e não mais às formas pré- ou não- democráticas de participação, como os sistemas de cooptação e as formas de dominação neo-patrimoniais)?
Existem dois temas importantes a partir daí, que são o da "democracia direta" vs democracia representativa, e o do nível administrativo e governamental a que estamos nos referindo. Estas duas questões estão ligadas. Mecanismos de participação política mais direta podem e devem ser estabelecidos a nível municipal, mas teriam grande dificuldade, ou impossibilidade, de se estabelecer a nível estadual ou federal. Qual seria o equivalente, a nível estadual ou federal, do orçamento participativo? De uma maneira geral, eu concordo com a tese sobre a importância e a necessidade de serem buscadas novas formas de envolvimento da população com os processos decisórios que interessam diretamente à vida da coletividade, ainda que, como este livro mostra, isto não se dê de maneira simples, mas provoca conflitos, levanta dúvidas, e requer um processo lento e laborioso de institucionalização. É difícil imaginar, no entanto, seu equivalente a nível de estados ou de país como um todo. Nestes níveis, acredito, o importante não é substituir as instituições políticas tradicionais da democracia, os partidos políticos, os legislativos e os sistemas eleitorais, por outras formas de participação que teriam, de qualquer maneira, que recriar mecanismos de delegação de poderes; o importante é aperfeiçoar as instituições políticas que temos, fazendo uso, tanto quanto possível, da experiência que podemos conhecer de outros países.
A experiência do orçamento participativo suscita um outro tema importante, que é a distinção entre o que é "técnico" ou estritamente administrativo, e o que deve estar sujeito à decisão comunitária no processo de orçamento participativo. Nem tudo é levado à decisão da população. Os gastos de pessoal, que formam a maior parte do orçamento, não são discutidos pela comunidade, presumivelmente porque a atual legislação não dá às prefeituras liberdade de mexer nestes custos. Mas isto pode mudar, se a legislação a respeito for alterada, e as prefeituras poderiam definir em conjunto com as comunidades seu posicionamento em relação ao debate político sobre a estabilidade do funcionalismo público, em termos do que isto significaria em aumento de recursos disponíveis para decisões participativas. Em certa medida, a distinção entre o "técnico" e o não técnico é, nela mesma, uma distinção política, já que ela implica em uma decisão de abrir ou não certas questões (e recursos) para a deliberação coletiva. O outro aspecto desta distinção é que existem coisas efetivamente complexas no processo orçamentário, que não podem ser traduzidas com simplicidade para o público em assembléias de participação. Não é à toa que Weber insistia tanto na burocracia e na profissionalização como elementos centrais dos regimes políticos democráticos. Eles requerem pessoas com conhecimentos especializados, que tenham não só a legitimidade, mas também a formação profissional e a competência técnica para tomar as decisões que se façam necessárias. Este é, naturalmente, um dos grandes nós dos sistemas democráticos, ou seja, como garantir a presença da competência técnica sem permitir que ela se transforme em tecnocrática. Esta questão não pode ser resolvida supondo que o técnico é sempre, por definição, tecnocrático, e que todas as decisões governamentais possam ser transferidas, sem perda de racionalidade, para mecanismos de consulta participativa. A experiência de Porto Alegre mostra como vão sendo criados mecanismos de delegação, de pessoas que se especializam (e se beneficiam especialmente) nesta participação, e de como a prefeitura tem que, de alguma maneira, manter o controle do processo, implantando regras, criando mecanismos de correção e estabelecendo princípios "técnicos" sobre o uso de parte substancial dos recursos.
Na parte final, o livro levanta o tema tão presente de se precisamos "mais Estado", ou de outras formas de gerir a coisa pública. Eu estou convencido que temos "Estado" demais em muitos setores; mas estou convencido também que não basta desmontar as estruturas arcaicas do Estado patrimonial para que as coisas funcionem bem. Questões como obras públicas, saneamento, transporte coletivo, meio ambiente, educação, saúde pública, continuarão a exigir instituições também públicas, e precisamos buscar novas formas de institucionalização dos mecanismos de decisão e participação social em relação a estas e muitas outras áreas. É neste sentido que as experiências de orçamento participativo me parecem extremamente importantes e interessantes.
Faço estes comentários somente para abrir o apetite do leitor para este livro escrito com tanta competência e com tanto envolvimento por Luciano Fedozzi, que, tenho certeza, se constituirá em uma referência importante na discussão dos processos de consolidação da ordem democrática brasileira.
Rio de Janeiro, Abril de 1997.
Autor: Luciano Fedozzi.
Editora: Tomo Editorial.
Gênero: Participação do cidadão, Cidadania.
Ano: 1999.
Paginas: 253.
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O que acontece na esfera política não depende só das formas institucionais de participação, mas da força e do peso relativo dos diversos atores e setores presentes nos processos políticos e administrativos, estruturas mais profundas relacionadas com a organização da sociedade para a articulação de seus interesses. O contraste que eu procurei estabelecer, escrevendo nos anos 70, entre "cooptação" e representação política correspondia, para mim, não somente a duas formas de organização do sistema político, mas a um problema mais profundo de força e peso relativo entre :"Estado" e "Sociedade" que condicionava a maneira pela qual o jogo político transcorria.. Se este peso relativo não se alterasse, pensava eu, então as instituições democráticas, mesmo se muito bem desenhadas, continuariam se corrompendo, e voltando a formas disfarçadas de dominação autoritária. Em outras palavras, o nível formal, institucional, não seria o decisivo.
Isto foi escrito nos anos de governo militar, e desde então estamos vivendo uma experiência de política democrática, não só porque temos instituições democráticas funcionando, mas por que o peso relativo da "Sociedade" brasileira em relação ao "Estado" se alterou. Agora, no sistema democrático, a questão das formas institucionais adquire nova relevância. Por que, se por um lado não seria possível alterar uma relação de força através de meros arranjos institucionais ou legais, o formato institucional que adotamos para colocar em prática os princípios e mecanismos de uma ordem democrática não são indiferentes. As discussões sobre as vantagens e desvantagens do regime parlamentarista, do voto distrital, da fidelidade partidária, a maneira pelas quais estas questões são ou não encaminhadas afetam, de maneira profunda, dois aspectos fundamentais de qualquer regime democrático, a sua legitimidade (ou seja, em que medida em que os governantes expressam efetivamente as aspirações e o mandato da população) e sua eficácia (ou seja, a capacidade que têm os governos de usarem de maneira efetiva e competente os recursos que recebem).
Em última análise, o que este livro discute é se as formas clássicas de organização da representação da sociedade em um regime democrático são adequadas, ou estão ultrapassadas, e precisariam ser substituídas por outros sistemas mais diretos de participação e representação. Existem dois problemas com as formas tradicionais de representação democrática, no nosso caso. Um é sua corrupção, na forma de regressão a modalidades personalistas ou patrimonialistas de poder; outro é o das dificuldades inerentes ao próprio modelo político de representação democrática. No primeiro caso, se trataria de uma democracia pouco consolidada. No segundo, estamos diante das limitações do próprio sistema democrático (ou, como querem alguns, da democracia "burguesa"), dentre as quais se ressaltam duas: a tendência à oligarquização dos regimes políticos burocratizados, e os problemas de racionalidade substantiva, próprios do welfare state, que requerem, presumivelmente, formas de relacionamento mais direto entre governo e cidadania, ao lado ou em acréscimo aos sistemas representativos tradicionais.
É nesse quadro que eu entenderia a discussão sobre orçamento participativo: em que medida ele seria um mecanismo de organização política de tipo pós-democrático, ou seja, que permitisse superar as limitações inerentes aos formatos democráticos usuais (e não mais às formas pré- ou não- democráticas de participação, como os sistemas de cooptação e as formas de dominação neo-patrimoniais)?
Existem dois temas importantes a partir daí, que são o da "democracia direta" vs democracia representativa, e o do nível administrativo e governamental a que estamos nos referindo. Estas duas questões estão ligadas. Mecanismos de participação política mais direta podem e devem ser estabelecidos a nível municipal, mas teriam grande dificuldade, ou impossibilidade, de se estabelecer a nível estadual ou federal. Qual seria o equivalente, a nível estadual ou federal, do orçamento participativo? De uma maneira geral, eu concordo com a tese sobre a importância e a necessidade de serem buscadas novas formas de envolvimento da população com os processos decisórios que interessam diretamente à vida da coletividade, ainda que, como este livro mostra, isto não se dê de maneira simples, mas provoca conflitos, levanta dúvidas, e requer um processo lento e laborioso de institucionalização. É difícil imaginar, no entanto, seu equivalente a nível de estados ou de país como um todo. Nestes níveis, acredito, o importante não é substituir as instituições políticas tradicionais da democracia, os partidos políticos, os legislativos e os sistemas eleitorais, por outras formas de participação que teriam, de qualquer maneira, que recriar mecanismos de delegação de poderes; o importante é aperfeiçoar as instituições políticas que temos, fazendo uso, tanto quanto possível, da experiência que podemos conhecer de outros países.
A experiência do orçamento participativo suscita um outro tema importante, que é a distinção entre o que é "técnico" ou estritamente administrativo, e o que deve estar sujeito à decisão comunitária no processo de orçamento participativo. Nem tudo é levado à decisão da população. Os gastos de pessoal, que formam a maior parte do orçamento, não são discutidos pela comunidade, presumivelmente porque a atual legislação não dá às prefeituras liberdade de mexer nestes custos. Mas isto pode mudar, se a legislação a respeito for alterada, e as prefeituras poderiam definir em conjunto com as comunidades seu posicionamento em relação ao debate político sobre a estabilidade do funcionalismo público, em termos do que isto significaria em aumento de recursos disponíveis para decisões participativas. Em certa medida, a distinção entre o "técnico" e o não técnico é, nela mesma, uma distinção política, já que ela implica em uma decisão de abrir ou não certas questões (e recursos) para a deliberação coletiva. O outro aspecto desta distinção é que existem coisas efetivamente complexas no processo orçamentário, que não podem ser traduzidas com simplicidade para o público em assembléias de participação. Não é à toa que Weber insistia tanto na burocracia e na profissionalização como elementos centrais dos regimes políticos democráticos. Eles requerem pessoas com conhecimentos especializados, que tenham não só a legitimidade, mas também a formação profissional e a competência técnica para tomar as decisões que se façam necessárias. Este é, naturalmente, um dos grandes nós dos sistemas democráticos, ou seja, como garantir a presença da competência técnica sem permitir que ela se transforme em tecnocrática. Esta questão não pode ser resolvida supondo que o técnico é sempre, por definição, tecnocrático, e que todas as decisões governamentais possam ser transferidas, sem perda de racionalidade, para mecanismos de consulta participativa. A experiência de Porto Alegre mostra como vão sendo criados mecanismos de delegação, de pessoas que se especializam (e se beneficiam especialmente) nesta participação, e de como a prefeitura tem que, de alguma maneira, manter o controle do processo, implantando regras, criando mecanismos de correção e estabelecendo princípios "técnicos" sobre o uso de parte substancial dos recursos.
Na parte final, o livro levanta o tema tão presente de se precisamos "mais Estado", ou de outras formas de gerir a coisa pública. Eu estou convencido que temos "Estado" demais em muitos setores; mas estou convencido também que não basta desmontar as estruturas arcaicas do Estado patrimonial para que as coisas funcionem bem. Questões como obras públicas, saneamento, transporte coletivo, meio ambiente, educação, saúde pública, continuarão a exigir instituições também públicas, e precisamos buscar novas formas de institucionalização dos mecanismos de decisão e participação social em relação a estas e muitas outras áreas. É neste sentido que as experiências de orçamento participativo me parecem extremamente importantes e interessantes.
Faço estes comentários somente para abrir o apetite do leitor para este livro escrito com tanta competência e com tanto envolvimento por Luciano Fedozzi, que, tenho certeza, se constituirá em uma referência importante na discussão dos processos de consolidação da ordem democrática brasileira.
Rio de Janeiro, Abril de 1997.
Autor: Luciano Fedozzi.
Editora: Tomo Editorial.
Gênero: Participação do cidadão, Cidadania.
Ano: 1999.
Paginas: 253.
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