"Quem não interpreta o que lê, além de fazer alarde daquilo que julga ter assimilado, não entende o que diz."

Getúlio

Um Presidente da República isolado em seu cargo. O cerco da imprensa, em quase unanimidade contrária. Uma elite desconfiada-e-meia deste Presidente. Os Estados Unidos mais desconfiados ainda. Um jornalista odiento. Um grupo de homens em torno do Presidente, não exatamente uns gentlemen, atraídos em parte por cargos e em parte por idéias. Um chefe da guarda fiel e perigoso como um cão. Um tiro no jornalista, que acaba por matar não ele mas um major seu guarda-costas.

De tão repisada a opinião culta do país conhece essa história e reconhece Getúlio Vargas, o ex-ditador então transformado em alvo da opinião conservadora. A Ultima Hora como único jornal a seu favor. O jornalista Carlos Lacerda, que odiava Getúlio e possivelmente o resto do mundo. O chefe da guarda, Gregório Fortunato. O crime da rua Tonelero que fez mais um desses heróis que são heróis por minutos em vida para se transformarem em ícones depois, o major Rubens Vaz. Tudo isso é conhecido por livros de memórias, romances, reportagens investigativas, entrevistas de descendentes e comemorações de partidos que se dizem legatários da herança de Getúlio.

O que é menos conhecido são os homens em torno de Getúlio e este é o ponto forte do livro. Euvaldo Lodi hoje só é conhecido como o nome de um instituto que arranja estágios em indústrias. Era um deputado riquíssimo, getulista, personagem importante do romance. O livro começa com ele, Benjamim Vargas e Lutero Vargas fazendo insinuações a Gregório sobre a conveniência de alguém matar Carlos Lacerda. Benjamim era irmão, Lutero era filho. A pesquisa detalhadíssima de Juremir nos faz saber que Lacerda era chamado de Corvo, e que o Corvochamava Lutero de Corno porque o mesmo se separara da mulher. Sabemos que a mulher era alemã. Que Lutero se achava menosprezado pelo pai. E que foi acusado de ser mandante direto do crime.
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Os personagens às vezes falam sobre o passado, ponto forte e fraco do livro. Fraco porque duas pessoas falando detalhadamente de um passado que é pelas duas por demais conhecido prejudica a verossimilhança. Forte por que por essas conversas ficamos sabendo por exemplo da relação reta como uma serpente entre Getúlio e o general Góis Monteiro, e que o filho deste morreu quando treinava para ser piloto militar.
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Além dos personagens históricos há também os fictícios. Tércio Ramos, biógrafo de Getúlio que já no governo FHC discute o passado com uma senhora estrangeira antigetulista. E Paulo Amato, o virtual agente duplo que atiça os homens de Getúlio a matarem Lacerda.

Mas o forte são os personagens reais e o livro recai no mesmo problema dos livros de história feitos por jornalistas, Eduardo Bueno, Fernando Morais e Zuenir Ventura à frente. A História como versão macro da Ilha de Caras: todos são ricos e famosos. Um assessor de Getúlio muito depois é pai do presidente do Banco Central, os demais são senadores, deputados, têm milhões na carteira. O homem e a mulher comum parecem ser penetras na História, se tanto.

Ou não: o povo entra no final. Getúlio vivo era cachorro morto, Getúlio morto é herói dos pobres. O livro de Juremir não conta essa transformação. Concentra-se em como chegou ao tiro, e sobre as pessoas amigas e inimigas e as meio um meio outro que o levaram a isso.
“Climério não responde. Afasta-se pela Hilário de Gouveia, na direção da praia. Passa por um Pontiac escuro. Lacerda e seu filho Sérgio, de 15 anos, depois de uma breve conversa com o motorista, descem do carro branco, estacionado no meio-fio, e não na rampa de acesso à porta do edifício, protegida por dois canteirinhos de flor, conforme as normas de segurança estabelecidas. Vêm de uma palestra no externato mariano São José, na Tijuca, onde o jornalista e candidato a deputado federal pela UDN repetira seus ferozes ataques aos Vargas.
- Esqueci a chave - diz Lacerda.
Pede a Sérgio que vá chamar o porteiro. O major-aviador Rubens Vaz, escalado para protegê-lo, num esquema de rodízio voluntário entre quatro amigos da FAB, despede-se. Alcino abotoa o jaquetão, avança uns vinte metros, atravessa a rua e, quando Carlos se dirige para a entrada da garagem, à direita do edifício Albervania, de número 180, dispara o seu Smith & Wesson 45. Passa da meia-noite. Já se está em 5 de agosto de 1954. O tiro ecoa nas ruas tranqüilas de Copacabana. Uma janela se abre. Lacerda dobra-se ligeiramente. Vaz, desarmado, contorna o pequeno veículo e enfrenta o pistoleiro. O combate é difícil Magro e escorregadio, Alcino tem a vantagem da arma na mão, mas Vaz é corajoso, forte, treinado, e tem a posição de ataque. Alcino dispara novamente. Caem. Mal se ergue, o pistoleiro atira mais uma vez. Outro tiro, vindo de outra posição, mais distante, da esquina da Hilário de Gouveia, arranca lascas do muro. Alcino foge para a Paula Freitas, que desemboca na Tonelero, no lado oposto ao da Hilário, uns trinta metros apenas do local de onde travou o seu combate com o homem de amarelo.
Há movimento na rua. Um carro aproxima-se. Carlos Lacerda ressurge e também atira, com seu 38, cano curto. Alcino já esta na Paula Freitas. Um guarda municipal, vindo do 4° DP, muito próximo dali, ordena que pare. O sangue ferve-lhe, embora se sinta gelado. Nada mais há a perder. O 45 pesa-lhe na mão. Derruba o policial com um tiro na coxa. A porta do táxi a sua espera, um Studebaker preto, não abre. Ele entra pelo vidro de trás e sussurra: “Pé na tabua." O motorista não o conhece, pois aguarda Climério, mas entende a situação e acelera. As balas do guarda Sálvio Romeiro atingem a traseira do veículo placa 5¬60-21. Nelson Raimundo acelera e eles se perdem no labirinto carioca. “

O texto de Juremir revela a retórica de uma época passional da imprensa e da política brasileiras ao resgatar os rastros da memória de uma galeria de personagens ainda vivos, passados mais de cinqüenta anos do tiro que rasgou as entranhas do Brasil - o pistoleiro de aluguel, a Bem-Amada, o secretário pessoal, a testemunha ocular da História, a 'espiã' alemã, o filho da vítima da rua Tonelero, os netos do presidente, a filha de Lacerda, o ajudante-de-ordens, as mulheres do coronel Bejo Vargas, os herdeiros políticos e os órfãos do caudilho.

GETÚLIO, do jornalista Juremir Machado da Silva, é o resultado de três anos de pesquisa em arquivos de documentos históricos, em jornais e em revistas. O autor leu mais de 150 livros sobre o político mais importante da história brasileira e entrevistou 73 pessoas direta ou indiretamente tocadas pela morte de Getúlio, em 24 de agosto de 1954. Juremir mostra Vargas na intimidade e na solidão do poder. Os rastros da memória em personagens como o pistoleiro de aluguel, a Bem-Amada, o secretário pessoal, a testemunha ocular da História, a espiã alemã, o filho da vítima, os netos do presidente, a filha do Corvo, o ajudante-de-ordens, as mulheres.

Autor: Juremir Machado da Silva.
Editora; BestBolso.
Gênero: politica e governo.
Paginas; 431.
Ano; 2007.

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