"Quem não interpreta o que lê, além de fazer alarde daquilo que julga ter assimilado, não entende o que diz."

História regional da infâmia.

                            A revolução sem mitos

História regional da infâmia é um livro que contesta os mitos que por séculos sustentaram o imaginário acerca da Revolução Farroupilha. Juremir Machado da Silva, romancista,professor universitário,ensaísta, historiador e tradutor, juntamente com uma equipe de dez pesquisadores, se debruçou sobre 15 mil documentos para trazer à luz este minucioso estudo sobre as verdadeiras causas da Guerra dos Farrapos.

 Assim como Jorge Luis Borges em sua História Universal da Infâmia, Juremir tira do pedestal podre da glória, os grandes heróis da Revolução- Bento Gonçalves, David Canabarro, general Neto, Vicente da Fontoura, entre outros- e os devolve ao plano terreno dos mortais, revelando como interesses pessoais corroeram o lema revolucionário de "Liberdade,Igualdade e Humanidade".
O autor também questiona a origem dos recursos financeiros que possibilitaram a Revolução Farroupilha. Por trás dos discursos abolicionistas havia o sistemático financiamento da luta armada com a venda de negros e promessas vazias de liberdade aos cativos que nela lutassem.

Sem receio de tocar em tabus da história gaúcha, Juremir alimenta a discussão sobre uma possível traição na batalha de Porongos, quando grande parte dos negros foi massacrada num ataque surpresa das forças imperiais, sustentando que a batalha não passou de um estratagema para o aniquilamento dos negros revolucionários.
História regional da infâmia revela em detalhes os bastidores dessa revolução de estancieiros gaúchos que, em quase dez anos de luta, contabilizou menos de 3 mil mortos-número que reduz o conflito a uma dimensão infinitamente menor do que aquela ensinada as escolas. A partir da análise da mistificação criada por historiadores que não só incharam a importância da revolta, como também deturbaram suas principais causas e escolheram seus heróis, o autor mostra que a Revolução Farroupilha acabou bem-ao menos para os seus líderes, que foram regiamente indenizados pelos vencedores imperiais.

                                                                                                     Os Editores.

     "Documentos costumam não ter virtudes. Somente verdades incomodas. Quem semeia mitos, se não tomar cuidado, colhe inverdades e revisões tardias."

                                             
                                                    Trecho.
Conta-se que num passado não muito distante grandes homens construíram o Brasil com força das suas mãos, com a energia dos seus ideias e com sangue que aceitaram verter em campos, rios, sertões e matas em nome do futuro e da pátria. Esses homens saíram da história para entrar no mito. Hoje, brilham em livros escolares ou figuram em placas de ruas paradoxalmente esquecidos e sempre lembrados. Quem foram estes homens? o que fizeram? Foram somente heróis? E se tivessem sido também infames personagens de uma época cruenta em que o futuro se fazia a golpes de preconceitos, de lança e de balas de canhão......

Tudo começou sem um fim claro.
  A revolução dos estancieiros teve início em 20 de setembro de 1835, quando os rebeldes tomaram a capital da Província, Porto Alegre. Menos de um ano depois eles a perderiam e, embora a sitiassem demoradamente em outras ocasiões, não mais a retomariam. Porto Alegre se manteve imperial praticamente ao longo de todo o conflito. Talvez por isso as grandes comemorações dos gaúchos, herdeiros dos farroupilhas, a cada 20 de setembro, na mui leal e valorosa Porto Alegre, pareçam fora de lugar, embora as suas ruas abundem em nomes de insurretos rejeitados. Em 1836, os rebeldes perceberam que não iriam muito longe se não engrossassem as suas tropas com a "negrada" que lhes servia de pau para toda obra. E é ai que começa uma história mal contada dentro de uma história excessivamente bem contada, uma narrativa tão perfeita a ponto de ligar todos os fios, mesmos os mais contraditórios, numa fábula sem brecha nem falhas.

" A Farroupilha é um caso único em que a história foi contada pelos vencidos"
       Manoel Pereira. neto de Manoel Congo, um dos negros sobreviventes da batalha de Porongos.

Araripe (1986, p.4) destaca três fases na Revolução Farroupilha: sedição, rebelião e sujeição. Na primeira etapa, militares descontentes deram um golpe, derrubaram o presidente da Província, Fernando Braga, apossaram-se da capital Porto Alegre e prepararam-se para negociar. Na segunda fase, empurrados pelas circunstancias, proclamaram a República e deixaram-se embalar por ideais grandiosos. Deram o passo maior que as pernas. Na terceira fase, asfixiados pelo poderio militar do Barão de Caxias, lutaram por uma paz que parecesse honrosa e fosse antes de tudo, rendosa.

Bento Gonçalves, na ordem do dia 5 de julho de 1841, "considerando a repugnância dos continentalistas para servir na infantaria, por serem excelentes cavaleiros, convida os republicanos para subscreverem escravos na arma da infantaria." Nada mais razoável que os brancos farroupilhas não quererem participar de tão honrosas forças, preferindo ir atrás delas, instalados no trono dos seus cavalos. Como eram valentes e heroicos, algo indiscutível, não era por medo ou excessivo apego à vida que rejeitavam servir na infantaria. Era mesmo por não gostar de andar a pé. Um escravo, porém, não tinha escolha. Caso sobrevivesse, mesmo a pé, poderia sonhar com a liberdade. Era o preço.
Araripe era mais impiedoso. Assim resumiu o talento bélico de Bento Gonçalves: "Sabia mais evitar perigos e preparar surpresas do que vencer batalha campal ...Sempre que travou peleja foi vencido'
 A documentação sobre isso tudo é farta e encontra-se, em boa parte, na famosa Coleção Varela (CV), guardada no arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.

"Documentos roem mitos. É a vingança da verdade."

David Canabarro não só foi negligente e incompetente, foi também  general mais idiota da história, aquele que perdeu a batalha e a guerra por causa de uma vadia e ainda teve de fugir só de cueca. Se assim foi, Canabarro cometeu crime de alta traição (em Porongos). Expôs a vida dos seus homens por falta de disciplina, de capacidade de analise da conjuntura em que se encontrava e, especialmente, por não aceitar os avisos que recebera. Mas, bem entendido, essa é apenas uma explicação machista da história ou mais uma manobra ridícula para tentar evitar que um herói caia do seu pedestal apodrecido.

"A história, como se sabe, costuma ser um romance infame e mal escrito cometidos pelos vencedores" Canudos teve Euclides da Cunha, Aos farroupilhas a sorte reservou Varela, Ferreira Rodrigues e Walter Spalding.

Não se faz um imaginário sem rituais e bens simbólicos. "Que sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra!". Quem poderia imaginar que uma frase dessas, tão modesta e estimulante, foi escrita por um sujeito conhecido como Chiquinho da Vovó? Quanto arroubo nesse afetivo! Musicado por um soldado imperial feito prisioneiro pelos farroupilhas, maestro Joaquim José de Mendanha, o hino rio-grandense também tem a sua polêmica. Na pressa de ser agradável aos novos senhores e de entregar o serviço reclamado, Mendanha teria plagiado uma "valsinha" do velho Strauss, sem chegar a piorá-la muito, nem o contrário, enfim, um trabalhinho bastante limpo.

O grade golpe de marketing dos estancieiros rebelados foi apresentado como universal numa insatisfação particular. Essa ideia só ganhou força passadas algumas décadas do fim da guerra civil que pós o Rio Grande ao Brasil. A década perdida transformou-se em "decênio glorioso", os caudilhos viraram heróis e as derrotas converteram-se em epopeias e vitórias tardias, Julio de Castilhos, estudante de Direito em São Paulo, nos anos 1880, numa carta com valor de marco referencial, alertara para a necessidade de se recuperar e estudar o grande conflito. O positivismo ascendente precisa de um mito fundador. Não se faz uma identidade sem uma fábula. O mito começa a galopar na coxilhas.

A principal causa da Revolução Farroupilha foram os carrapatos. O surto de 1834 abalou o gado dos estancieiros do Rio Grande e provocou uma crise sem precedentes. Esse infortúnio tomaria, a partir de 1835, um tom político e de confronto com o poder central, provocando uma guerra civil, a proclamação de uma república e dez anos de mortandade. Parece uma zombaria, mas é verdade.

Passados mais de 170 anos do fim da Revolução Farroupilha, procuradores do Ministério Público propuseram extinguir o MST por considerar que ele atenta contra o Estado de Direito. Esse tipo paralelo peca por anacronismo, mas não deixa de ser interessante. O MST, a exemplo dos farrapos, entende que os poderes constituídos não são sensíveis às necessidades básicas da gente do campo que representa. Os farrapos, sustentaram a guerra civil contra o poder central durante o "decênio glorioso" por razões semelhantes. Entendiam que o Império era tirânico e insensível aos interesses deles. Queriam pagar menos impostos e ter melhores condições de produção. A diferença é que os farrapos eram fazendeiros. O Brasil era uma monarquia constitucional. Os farrapos atentaram contra o Estado de Direito. Foram processados. Os procuradores do século XXI deviam talvez propor a proibição dos festejos da Evolução Farroupilha pra evitar maus exemplos de insubordinação e rebeldia.

A semana farroupilha, como comemoração oficial do Rio Grande do Sul, foi instituída coincidentemente em dezembro de 1964, oito meses depois de implantada a ditadura militar no Brasil, cujo golpe havia sido retardado em dez anos pelo suicídio do gaúcho Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954. Que sirvam nossas façanhas de modelo...Cuidado, porém com os aspectos!
"Eles podem contar o ouro que um dia deve ser a herança dos seus filhos, mas calcular de infâmia que acompanha esse legado, jamais,jamais!"

"O historiador desmancha prazeres. Cabe-lhe muitas vezes atrapalhar os mais belos sonhos daqueles que têm o poder de fazer sonhar."

Autor: Juremir Machado da Silva.
Editora: L&PM.
Gênero: História. Rio Grande do Sul.
Subtítulo: O destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras(ou como se produzem os imaginários)
Ano: 2014. 4 edição.
Paginas; 343.

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